sexta-feira, 11 de setembro de 2009

por que você não quer me ver?

Hoje soube que você não quer mais me ver.
Por isso agora choro. Angustiada e com raiva, sem ter a quem reclamar.
A casa está vazia e me apego ao silêncio.
Quero que você saiba que não é tristeza que sinto:
só raiva, mágoa e ressentimento porque você não quer mais me ver.
Se você partir, levará de mim isso apenas: sentimento mesquinho e pequeno, dor por mim, não por você.
Por que não me ver?
Estou perdida, ninguém para me ouvir, e agora preciso mais que nunca reclamar de você.
Falamos de tantas sandices e coisas triviais para ocultar os assuntos cruentos e duros, esses sempre sem palavras.
Sabíamos da verdade, mas entendemos que seria transitória. Não nos valeria desperdiçar tempo recriminando a injustiça da vida, da dor, do sofrimento, da doença. Coisas por demais pequenas para te abater.
Nos momentos mais difíceis discutíamos a vida dos outros: sempre tivemos a solução para tudo.
Muitas vezes rimos. Você de mim, por sair de pijamas com capa de chuva nos dias de sol, por pura preguiça, acreditando que ninguém notava; Eu de você, por estar de pijamas ao meio dia, pelo cansaço.
Resolvemos juntas os problemas do mundo: desde interfones à janelas, de vizinhos à pintores.
(lembra do "Seu" Patinete? O pintor de paredes tão chato que até lhe mudamos o nome?)
Já falamos de noras e filhos, do mercado e das compras, enquanto no silêncio falávamos da eternidade.
Você se manteve integra na fé, eu agora questiono mais a cada dia.
Falamos de filmes, livros e teatro, mas falta tanto ainda!
Falamos das nossas mães, das mães das nossas mães e de ser mãe.
Um dia, enquanto te contava um sonho cujo final me escapou, você me alertou para ter um caderno na cabeceira e anotá-los. Providencia toda tua, eu acatei.
Agora sofrendo acato tua vontade de não te ver.
Quero ainda anotar muitas coisas, mas não o pesadelo de uma despedida tão precoce.
Pude te contar que para a boneca mais bonita que ganhei na infância dei teu nome.
Faz tanto tempo, e eu envergonhada só queria dizer que te achava linda.
Um dia achei a boneca e rimos dela, desbotada e envelhecida: você continua linda.
Entenda que para mim só há essa maneira de te ver: linda!
Não importa sua opinião, você está e sempre esteve linda!
Me deixa te ver! Por mim, não por você.
Egoísta, reconheço, quero ainda falar de mim, da minha empregada e da cor da parede que definitivamente não gosto.
Quero continuar driblando o tempo enquanto falamos frivolidades.
Quero falar do dia que você pegou minha mão, eu vestida de noiva, e no meio da festa do meu casamento disse com um sorriso:
-Tão linda, parece primeira comunhão!
Como sempre você desvendou num segundo, docemente contundente, delicadamente verdadeira, tudo aquilo que eu recusava ver.
Quero te contar que no dia em que você falou preferir que seu irmão fosse padrinho do meu filho eu entendi. Delicadamente generosa você nos uniu ainda mais.
Quero falar mais, mais e mais de mim, das minhas aflições triviais, do meu mundinho pequeno.
Poderia mesmo só te ver, nem falar, mas preciso dizer que sem você para me ouvir eu sufoco.
Quero ouvir teu riso -que tem pausas, e ouvir as histórias do teu dia, só para te interromper e falar com você.
Quero falar da minha indignação com essa tua dignidade ostensiva, com esse seu jeito meigo e egoísta de abocanhar sozinha todo sofrimento.
Por favor, não me deixa sofrer sem você. Deixa eu te ver, para falar baixinho quanto eu ainda preciso te ouvir.
Entenda que ainda não é a hora, por isso não há lágrimas de despedida.
Sou eu quem precisa muito de você, para secar as lágrimas de revolta, de raiva e ressentimento.
Deixa eu te ver e me consola da tua falta, para que eu, ainda que amargurada, saiba que sou para ti também presença necessária.


Um comentário:

Alexandre disse...

As recordações são celebrações da vida. Sofrer o sofrimento alheio traduz a nossa incapacidade de se conformar com a proximidade da morte dos nossos entes queridos. Que dizer? Injustiça? Por que uns e não outros? Por que temos tanta dificuldade em aceitar que quem não quer nos ver é porque quer que recordemos dos bons momentos e da celebração da vida? Por que temos que nos expor em nossos momentos, muito ímtimos, de fragilidade?