Tenho certeza que quando morrer e chegar ao céu existirá por lá uma porta com um interfone, um leitor de código de barras e um teclado de números.
Mesmo que passe algum tempo ao interfone falando de mim na terceira pessoa, ou f-a-la-n-d-o p-a-u-s-a-d-a-m-e-n-t-e, pela ausência de gestos para que o interlocutor entenda, tudo bem, não terei pressa. A eternidade me aguarda.
Ainda que a leitora ótica me determine a esfregar o cartão de entrada mil vezes, como Aladim fez com a lâmpada, ou me obrigue a assumir posições absurdas para expor o código de barras, serei paciente e controlada.
O problema vai ser quando pedirem para digitar a senha.
Aí, ...ai!
Certamente serei tomada por uma crise de pânico, pensando que só poderei errar duas vezes a senha, ou serei arremessada no espaço, posto que o limbo já não mais existe (aliás, onde andam os animais e as criancinhas sem batismo?).
Parece que alguém grita ao longe: -Estátua!
Imediatamente obedecerei ao comando, ficarei rígida, parada, sem ação. É que nesses momentos sempre invade o pânico paralisante que algum músculo ou nervo desobedeça meu cérebro, e propositadamente, em conspiração contra mim, desvie dos botões certos os dedos, dessa vez me condenando ao vazio eterno.
Ocasiões como essa me tomam muito tempo, para que, suando e com grande esforço, eu retome o controle, inicie a digitação vagarosamente.
Iniciar? Não! Eu apenas tentarei, pois nesse minuto surgirá apoteótica a segunda dúvida do Apocalipse:
-Qual a senha?
AH! NÃO!
Essa senha foi enviada para minha última residência? Veio comigo na minha entrada no mundo? Fui eu que escolhi? Como fui eu? não me lembro...
Então sim, poderei experimentar mais uma vez a maior sensação de impotência que o ser humano conhece: saber que escolhi a própria senha, o próprio destino, e sou incapaz de lembrar. Pura humilhação. Afinal entre as infinitas combinações aleatórias poderia ter escolhido uma qualquer, que remetesse a uma sequência familiar, uma data, e certamente escolhi a que me pareceu óbvia, mas nem assim lembrarei.
Sei que em busca de pistas, retornarei candidamente ao interfone, perguntando na mais doce das vozes:
-Quantos dígitos tem essa senha?
Também sei que a resposta será assustadora:
-Ela tem oito dígitos, mas só devem ser utilizados os quatro últimos.
Pronto. Embaralhar-se-ão todos os pensamentos que buscavam ser ordenados.
Nunca consegui entender, mesmo no mundo real, por certo não entenderei no celestial:
Se a senha tem um determinado número de dígitos, por que só se deveria digitar dois do meio, três alternados, o primeiro e os dois últimos...? Isso só pode ser invenção de um espírito ruim, que secretamente ri enquanto cria tal limitação, se diverte às escancaras vendo milhares de pessoas, simplórias como eu, tendo os portões do paraíso ou do caixa automático lacrados pela eternidade por não coordenar movimento, memória e pegadinha de pular este ou aquele dígito.
Diante de mais essa exigência a imobilidade inicial se alongará muito, o pulso vai acelerar, o suor gotejar, tudo para evitar que os movimentos involuntários me traiam, que a memória me abandone e ainda, que finalmente o raciocínio se mantenha firme, para que eu possa lembrar a senha e digitar não por inteiro, mas saltando os números determinados.
Sei que nesse momento, cautelosa, farei mil e duas vezes o procedimento mentalmente, ainda estátua na porta do paraíso, num ensaio para iniciar timidamente a última ação do mundo carnal.
Evidente, com o passar das horas, já em cãibras, imagino pressionada pela longa fila de candidatos a recompensa eterna que se formou desde a minha chegada, terei que começar o procedimento desde o início: esfregar novamente o cartão, retorcer o corpo para que o feixe de luz da leitora ótica alcance o código completo, esperar aparecer o espaço da senha, e finalmente, um a um, vagarosamente, com um só dedo indicador, teclar os números da senha, lembrada com enorme esforço, concentrando em quantos e quais números devem ser digitados.
Durante a vida terrena milhares de senhas me foram impostas -até para usar meu próprio computador, mas agora lembrarei da derradeira.
Então no último momento, se revelará a terceira dúvida do Apocalipse.
Intransponível.
Essa até agora sem resposta:
-Quando o "sistema" vai entrar "no ar" novamente?
Concluo então que o capeta tem as chaves do prazer eterno, e as esconde bem.
Como nos bailes da vida, melhor ser amigo do porteiro e entrar logo na festa com um aceno e um sorriso, que passar a noite no sereno explicando onde está o convite e seu nome na lista.
Um comentário:
Show!
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